O flâneur e o ilusionista
O séc. XIX foi pródigo em desenhar algumas das figuras e temas que vão influenciar a atitude característica da contemporaneidade. O flâneur, uma personagem descrita por Baudelaire, é, disto, exemplo. É uma figura do efémero e da mobilidade, conceitos explorados pela arte contemporânea, e que não é alheia a Sabine Hornig. O flâneur é um Eu saciante de Não-Eus, uma manifestação do esvaziamento do homem citadino e industrial que retira o seu prazer da multidão, que procura ansiosamente como um «reservatório de electricidade». Nos seus passeios, antepassados do acto da deriva (posteriormente protagonizado pelo movimento dadaísta e pelos situacionistas), esta personagem deleita-se pela cidade, elegendo como locais favoritos as arcadas que ligam um lugar a outro e que se podem definir como não-lugares, no entendimento de Marc Augé. Afirma-se, assim, como um colector de experiências e topografias, contando com a ajuda da memória que ficcionalmente recria esses fragmentos captados.
Outros dos seus locais de eleição são as vitrinas das lojas na cidade. Esse fascínio pela montra é sintoma de uma economia em crescimento e da preocupação com a visibilidade (como se tratasse de um espectáculo teatral, de uma mise-en-scène), que a modernidade acarreta. Na sua série de janelas a artista fala-nos dessa espécie de voyeurismo, ávido de novidade, que encontra algo num processo de transição e não um produto acabado, colocando o espectador num estado de reflexão. De certa forma, é um esvaziamento da modernidade, uma crítica às utopias iniciais em ambos os sistemas políticos ocidentais e orientais.
O facto destas imagens se apresentarem como naturezas-mortas assim o comprova. Qualquer natureza-morta é símbolo de uma vanitas sem sentido, de um pecado da luxúria e que se expressa em elementos tais como a caveira e o espelho, ambos simbolizando morte e vaidade mas, sobretudo, impermanência. Exemplo desta questão é a alusão a Berlim, símbolo de todo este processo de destruição e posterior reconstrução, uma distopia que emerge de uma utopia política e económica cujo desaparecimento se pode revelar, todavia, promissor. Numa época de recessão económica, estes espaços vazios podem ser o início de algo e não o fim.
O ilusionista, outra das personagens-tipo do fascínio de finais do séc. XIX pelo estranho, é alguém que transforma coisas, num processo alquímico, noutras coisas. Mas igualmente alguém que apresenta algo como se fosse um outro algo, iludindo-nos. Hornig sempre se sentiu fascinada por este poder de ilusão, presente nas artes plásticas desde o seu início. Devido a esta capacidade de substituição do mundo das essências pela aparência, Platão condenou todas as formas de artes plásticas e visuais, remetendo-as ao mundo do simulacro. A cópia, como afirma Benjamin, faz com que a obra de arte perca a sua aura.
Em Hornig assistimos, pelo uso do trompe l´oeil e pelo jogo de percepção com o espectador, que a capacidade de ilusão, ao contrário do passado penoso que a condenava, é na verdade, uma profunda essência de toda a arte e que a cópia é uma forma de dar uma nova vida ao existente. De facto, a Arte não provém de algo sem origem, ela antes reinventa o mundo que nos rodeia.
Como ilusionista, Hornig é também uma jogadora que tece comentários irónicos sobre as escalas, a vida quotidiana, a funcionalidade disfuncional dos seus espaços e, sobretudo, com a percepção do observador. Joga com a ilusão das dicotomias interior/exterior, materiais sólidos/materiais efémeros, transparência/opacidade, entre outras. A opacidade e o mistério contidos na figura do ilusionista são igualmente uma metáfora importante para a artista, no sentido em que a ilusão da transparência é, aqui, uma analogia para o facto de, apesar de vivermos num mundo do tudo visto (como exemplifica Foucault no sistema panóptico ou Lipovetsky no seu estudo sobre a cultura do ecrã), nunca podermos saber, na verdade, a totalidade do mundo, tal como na história da biblioteca de Babel de Borges que narra a aventura da procura do «livro dos livros» sem nunca o encontrar. No lugar dessa vã promessa irrealizável, podemos conhecer, no entanto, um mundo infinito de possibilidades. A tentativa de Hornig, inspirada pela tradição pictórica do séc. XVII, de contrariar a perspectiva única herdada do Renascimento, cuja janela é uma metáfora, prende-se com este facto.
Nas suas obras, são múltiplas as perspectivas do olhar, infinitas as possibilidades de reconstrução. É daí que advém o sentido da sua abstracção, a oferta de um terreno múltiplo de interpretações que enriquecem e complexificam o seu trabalho. Para o entendermos existe todo um processo de mobilidade do olhar que exige uma suspensão da descrença, como afirma Coleridge. A magia do plano virtual que nos apresenta faz com que as imagens e o tempo se encontrem num único momento, aqui e agora, justificando a inspiração do título para as obras em exposição.
Só então, just then, as figuras do flâneur e do ilusionista se fundem numa eterna jouissance, colapsando o tempo e o espaço, numa
arte actual e, simultaneamente, anacrónica.
Carla de Utra Mendes