© Vasco Stocker Vilhena
Coisas vivas
[e o desletramento pela pedra]
Um desletramento pela pedra: por colunas;
para desaprender da pedra, fotografá-la.
Seria essa uma possível transcriação dos primeiros dois versos do poema de João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra, trazido para o universo fotográfico de Rosângela Rennó? O que mais pode envolver a aproximação entre ambos artistas, cujas produções e perspectivas poéticas de intervenção no mundo carregam um viés metacrítico de alto teor metamórfico.
De um lado, as figuras imaginadas pelo poeta pernambucano, tidas como descrições incomparáveis na história da poesia brasileira, fazem com que seu fazer literário fosse muito mais da ordem do visual e do imagético do que propriamente auditivo. De outro lado, os procedimentos por meio dos quais Rennó produz imagens evidenciam o exercício contínuo das capacidades de compreensão de aspectos da realidade social, cultural e política contemporânea, assim como o uso ativo da escrita (textual e imagética), a fim de nos capacitar com instrumentos de análise crítica do mundo. Um exercício também conhecido como letramento.
O letramento visual de Rosângela Rennó percorre caminhos e vias alternativas de revisão e enfrentamento da premissa ontológica da fotografia: como na compilação e seleção de imagens de arquivos ao invés da criação de novas fotografias; na utilização de negativos fotográficos e slides no lugar da exposição de impressões fotográficas; ou então na dissipação de qualquer nitidez de imagem por meio de vedações, espelhamentos, filtros e outros apagamentos.
Além disso, as intervenções visuais e literárias que constituem sua obra nos permite recriar e refletir sobre cenários políticos e momentos da história – golpes militares, massacres civis, resistências coletivas – que são singulares em si, mas guardam resquícios de uma paisagem fotográfica com um horizonte de violências. Esses resquícios, quando transmitidos de geração em geração, permanecem operantes, vivos, reforçando o estatuto político da fotografia, assim como sua premissa imperial.
Em Coisas vivas [e o desletramento pela pedra], Rennó exercita justamente o componente fotográfico dessa paisagem colonial de longa duração, que se estendeu pelo amplo território português até o além-mar, incluindo terras brasileiras e personagens dos dois lados do atlântico.
Na obra Cinco Pedros, por exemplo, Rennó manifesta a multiplicidade fotográfica ao discorrer sobre a continuidade real da história portuguesa por meio da coroação de cinco indivíduos chamados Pedro. Cada um a seu modo – seja Pedro, o Justiceiro/Cruel, quanto Pedro, o Pacífico, como ainda Pedro, o Sacristão, além do Pedro, o Libertador –, os Pedros personificam a Casa Real Portuguesa. A correspondência fotográfica está nas reincidências, ou seja, na lembrança de que, assim como vários Pedros, não houve apenas um início para a história da fotografia, e sim vários inícios espalhados no tempo: não apenas 1839, mas também 1492, 1938, 1798, 1908, 1808 e 1888; datas que concentram conhecimento e poder simbólico na manutenção do regime histórico. Cabe a Rennó expor esses quase novecentos anos de ficção institucionalizada.
A extensão espaço-temporal portuguesa também se faz presente com o próprio componente fotográfico operando como tecnologia imperial, na produção de artefatos como marcos, documentos, registros e provas. Essa expansão, seja pelo uso da violência com o registro forçado de grupos reféns, seja pela cooperação de direitos civis da imagem do outro, aparece na hipótese de que “enquanto mapeava o espaço imperial, a fotografia também servia para apagá-lo, e que a perda desse lugar através da visão talvez tenha sido outro intento de impedir o desencantamento do mundo”*. O friso de Gabinete do Crime (2024/2025) é prova cabal dessa dubiedade, e a escala humana do trabalho faz com que o público encare de frente o políptico e suas forças operantes, presentificadas de diversas formas, ainda mais com seu tesouro – seu ouro – ainda velado.
Retornando à pedra: para desaprender da pedra, fotografá-la. A grafia pela luz, assim como a grafia pela pedra, é um dispositivo de recordação de que a história e letramento são dinâmicos, e por isso reversíveis. O que fazer, pois, quando essa pedra toma a forma de colunas, de equipamento e mobiliário urbano, de marcos de reconhecimento e invasão de territórios, de monumentos e pelourinhos?. Da metacrítica cabralina aos registros das sessões das “Cortes Portuguesas”, a pedra como figura de linguagem ou como objeto nos libera para empreender uma dinâmica de desletramento fotográfico: desaprender a história mundial para experimentar com uma história potencial.
Em se tratando de Rennó, a apreciação estritamente documental produzida pela fotografia é no mínimo ambígua, contrastada. Se, por um lado, a fotografia remete ao tratamento de representação autêntica que lhe confere fidelidade, passível de registrar de maneira científica a vasta extensão de pelourinhos distribuídos pelo território colonial português, por outro lado, a equivalência violenta entre fotografia e pelourinho como duas medidas desse mesmo território imperial se manifesta em Coisas Vivas (2023-2025). Essas colunas, monumentais e invisíveis, estão espalhadas por terras tidas como, nas palavras de Daguerre, o lar tropical da fotografia, afirmando que sua invenção funcionaria melhor no “Sul”, em lugares com maior intensidade do sol, como Espanha, Portugal, África, etc. Com Hercule Florence, sabemos que o Brasil também se enquadraria nessa metáfora geo-foto-gráfica.
Por conta de todas essas pedras e Pedros, o letramento de Rennó torna-se desletramento. O desletramento pela pedra é um processo no qual o desaprender não envolve apenas um fortalecimento perante as adversidades e golpes de vento; a pedra dura que recebe as batidas da água mole evidencia que a expressão de linguagem, assim como o próprio fenômeno, são diferentes quando causados pelas águas das colônias.
André Pitol
Outubro 2025
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* Natalia Brizuela. Fotografia e Império: paisagens para um Brasil moderno. 1º ed. São Paulo: Companhia das Letras/Instituto Moreira Salles, 2012, p. 20.