A exposição que a artista brasileira Rosângela Rennó (Belo Horizonte, 1962) pensou para a Cristina Guerra Contemporary Art divide-se em três momentos, correspondentes a três séries de trabalhos diferentes. O tíulo da exposição é uma citação de um excerto de um poema de Manoel de Barros, importante poeta brasileiro nascido no Mato Grosso em 1912.
O núcleo central, cujo título Matéria de Poesia (para Manoel de Barros) é uma citação directa do título de um livro do poeta brasileiro, consiste num grande conjunto de imagens fotográficas digitais, impressas em jacto de tinta, reunidas em 6 módulos de 6 imagens cada. Realizados entre 2008 e 2009, estes trabalhos consistem na condensação das imagens resultantes da sobreposição de um grupo de slides (todos eles encontrados ou comprados em feiras e antiquários). O resultado é o quase apagamento das imagens originais, pela acumulação de informação numa superfície negra, pontuada por alguns fantasmas que surgem fragmentados, sobrepostos e descontextualizados. O título de outra publicação do referido poeta parece elucidar perfeitamente sobre o que vislumbramos nestes trabalhos: “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”. Esta série reflecte, por um lado, sobre o uso quotidiano e comum atribuído antigamente ao slide, o qual era coleccionado e desfrutado frequentemente em grande quantidade. Hoje em dia, está praticamente obsoleto, assim como está o acto social – o ritual – da sua partilha com a família e amigos. Cada módulo de 6 imagens é complementado pelos slides originais e por um verso de Manoel de Barros.
Outra série presente na exposição é Carrazeda+Cariri (2009), a qual pode ser pensada como o reverso da série Matéria de Poesia. Do slide em desuso que é transformado em digital passamos para a imagem digital que é transformada num retrato único, através de uma prática em risco de sobrevivência, a foto-pintura, outrora muito recorrente no interior do Brasil. Rennó procurou na internet uma galeria de 18 retratos dos solteiros de uma localidade no norte de Portugal, Carrazeda de Ansiães, na qual é escassa a presença de mulheres dispostas a casarem-se, por se recusarem a seguir a dura vida do campo. Estes retratos foram enviados a 2 mestres foto-pintores provenientes de uma localidade brasileira onde esta prática era particularmente apadrinhada, o Cariri, para cristalizarem aquele momento preciso e único e sem saída, como o próprio retrato pintado. As galerias de retratos foram realizadas pelos mestres Júlio e Abdom e as fotografias originais foram feitas por Eduardo Pinto, Rui Lopes e Rui Martins.
Por fim, Rosangela Rennó apresenta um livro de artista intitulado 2005-510117385-5, o número do processo criminal instaurado pela polícia brasileira para investigar o furto de 751 fotografias do acervo da Biblioteca Nacional Brasileira, localizada no Rio de Janeiro, durante uma greve de funcionários, em 2005. Passados 3 anos e sem que a investigação tenha sido concluída, foram recuperadas e reintegradas no acervo da Biblioteca apenas 101 dessas fotografias, todas elas encontradas vandalizadas na tentativa de apagar o registo daquele património como pertença da Biblioteca Nacional. O livro criado por Rennó, é um álbum de fotografias, onde se vê apenas o verso das imagens. A impossibilidade de acesso à imagem metaforiza a lacuna no património imagético brasileiro que este furto representa. Ao escolherem imagens históricas, apetecíveis no mercado de coleccionismo fotográfico, os mentores do crime, sem que haja até a data qualquer apreensão, roubaram uma parte da memória da história do Brasil que fica assim em branco, vazia.