Apresentando uma nova série de pinturas em grande escala, a exposição “What do they feel?” de Matt Mullican mergulha no universo molecular do interstício corporal de That Person (aquela pessoa), ou Glen, o alter ego que o artista vem a desvendar desde as suas primeiras incursões sobre hipnose em 1973. Sem género, idade, ou raça That Person tornou-se o veículo anónimo através do qual Mullican explora uma dimensão paralela expressiva, dando liberdade à gestualidade catártica. Não por isso deixa a mesma de ser sistematizada e minuciosamente organizada, demonstrando após 45 anos de carreira um universo sintáctico, pictórico, e conceptual que se torna o cerne cosmológico da sua obra prolífica, que se expande pelos campos da performance, escultura, pintura e instalação.
“All I see are light patterns”, diz-nos o artista em 1972, desmontando o espectro de luz num código do real visível: verde traduz os elementos naturais; azul, o mundo; amarelo, a cultura; preto e branco, a linguagem; vermelho, a mente. Dois dos cinco níveis da sua ordem cosmológica podem ser identificados na série de pinturas Untitled (Signs in the Elements of That Body), representando close-ups anatómicos de paisagens celulares, quase industriais, que se tornam aproximações à complexidade ramificada de um urbanismo citadino abstracto. Nestas pinturas, que parecem elas mesmas partir de amostras laboratoriais, submergimos na engrenagem molecular psicadélica e ziguezagueante de tecidos entrelaçados, perdidos algures entre diagramas metabólicos e estruturas biónicas. Já em What My Eyes See, 2018, podemos encontrar o corpo de That Person refractado através do mesmo espectro de cor, desta vez decomposto através de pedras pintadas expostas sobre uma base de cama.
O espaço interpretativo criado por Mullican, interliga mundos pop, brut, conceptuais e minimalistas, recorrendo a estratégias de redução gráfica que dominam o território formal da sua práctica artística. Estas sugerem um intervalo entre um espaço semiótico altamente codificado, onde pictogramas e signos criam alfabetos enciclopédicos, e uma destreza expressiva que se inspira na escrita automática. Técnicas como a frottage – que o artista identifica como o primeiro meio de reprodução de imagens, onde a transferência de energia traduz informação simbólica – tornam-se centrais à sua obra e são aqui pela primeira vez apresentadas sobre fotografias impressas em tela, na série Untitled (Yellow Monster) de 2018.
A mesma técnica é também aplicada na série Untitled (Dead Man Nr.1-4), 2018, para dar corpo a desenhos abstractos que partem de estilizações de fotografias da Guerra Civil Americana (1861-65). Reduzidas a linha através de um suporte digital, esta série de quatro pinturas desenvolve-se a partir de uma estratégia de síntese formal, onde paisagem e corpo se fundem num plano em abstracção. Os limites da representação objectiva são postos à prova quando Mullican disseca as componentes espaciais do campo representado, depurando o seu conteúdo e relembrando-nos do papel da arte como interface recodificador do real. A redução da linha e componentes pictóricos da obra apelam também à reflexão sobre a própria condição liminar da morte, bem como o debate ético sobre a sua representação nos media, tendo em conta a circulação excessiva de imagens de guerra hoje em dia, e a replicação das mesmas, o que poderá conduzir a um estado generalizado de imunidade sensorial, ou mediaticidade desmedida. Não obstante, Untitled (Dead Man Nr.1-4) alude também à revisitada série Dolls Head Posters e à obra Dead Man and Doll de 1973, incluindo subtítulos na fonte desenhada pelo próprio artista. A mesma tipografia está presente na série That Person Lives, 2018, que descreve acções quotidianas de That Person, ou Glen, o passageiro íntimo de Mullican, que é introduzido aqui na repetição rítmica da sua anonimidade mundana.
Margarida Mendes