Tudo à vista
Mostra-se tudo, vê-se tudo – este é um possível slogan para o pornográfico. E quando falamos de pornografia não nos referimos exclusivamente a um subgénero específico da indústria cinematográfica. Apontamos para uma determinada noção do direito de olhar, para um patrocínio da necessidade de tudo ver que talvez tenha como paradigma aquela indústria, mas que se estende a vários outros regimes de imagem e que institui o acto de ver como um absoluto esquadrinhamento da imagem, e da imagem nítida e precisa. Como se a visão, para ser de facto visão, tivesse tido de evacuar tudo o que não fosse desfile, inventário, grande-plano.
Vem isto a propósito de eye level, peça de Luís Paulo Costa agora exposta na Galeria Cristina Guerra (que aliás dá o título à exposição). Uma vulgar prateleira de madeira está colocada na parede a uma altura de aproximadamente 1.72m. Espalhadas sobre esta placa estão fotografias pornográficas. Cada uma mostra muito explicitamente, claro está, uma possível variação do acto sexual. A questão é que a localização da prateleira impede que vejamos nitidamente as imagens, associada ao facto de as fotografias estarem sobrepostas e coladas entre si e à madeira, tapando-se enquanto formam camadas sucessivas.
Creio que a relação do espectador com esta obra pode, de alguma forma, sintetizar as preocupações que têm guiado este artista e apontar para o seu particular processo de trabalho. Esta prateleira começa por ser encarada pelo visitante como um comum objecto produzido industrialmente, desprovido de qualquer particularidade digna de nota. Digamos que se dá bem a ver, está na parede, à vista de todos, ao mesmo tempo que desaparece na massa dos objectos genéricos – aqueles que utilizamos quase sem dar por eles. Esta carência de qualidades, associada ao seu aparecimento numa exposição, é o suficiente para uma cuidadosa inspecção – quando se descobrem as tais imagens pornográficas. É quase sádica a forma como estas imagens não nos são dadas a ver: associadas por definição à promessa de tudo mostrar, delas temos acesso (dependendo da nossa estatura) principalmente às periferias, às zonas mortas, ao que não era, longe disso, o principal interesse dos autores das imagens. Mais à frente, e prosseguindo a actividade forense que caracteriza a nossa relação com as obras de Luís Paulo Costa, percebemos que madeira e fotografias foram minuciosamente pintadas pelo artista, fazendo com que os objectos desaparecessem à medida que se copiava cada detalhe e se lhe sobrepunha cada pincelada.
O facto é que os objectos apresentados por este artista – e esta exposição, como veremos, não é uma excepção – apontam sempre para um nó entre visibilidade e invisibilidade, para um ponto em que estas duas categorias se não excluem mutuamente. Porque, como vimos, são muitas vezes objectos industriais, genéricos, longe de serem únicos ou especiais; porque estão pintados de uma forma individualizada e meticulosa, mas que não chega a desmentir totalmente aquele seu estatuto (trivial, genérico), visto que se elide o tempo empregue na sua factura (quanto mais minucioso e demorado mais desaparece o trabalho manual); finalmente, porque Luís Paulo Costa frustra o tal instituído direito de ver, e de ver tudo nítida e precisamente. Interessante é que para isso não tenha de recorrer exclusivamente ao fora-de-campo, à obstrução do olhar, ao apagamento. Em standing, outra das obras agora expostas, mostra-se uma projecção vídeo num écran suspenso. Sentados no típico banco de museu/galeria, que serve para ver confortavelmente trabalhos em vídeo, percebemos que nada acontece, que o écran permanece branco, como se nada estivesse a ser projectado. Quem se levante com a esperança de estar perante uma tela opaca e encontrar imagens no lado do écran onde está a ser feita a projecção percebe que aquele branco nunca correspondeu à cor da tela, mas a algo que é mesmo projectado. Aquilo que foi filmado foi a parede da galeria oposta ao projector, de facto branca, e que é mostrada ininterruptamente. Isto enquanto ouvimos os sons próprios de um normal dia de trabalho na galeria, como terá sido o dia escolhido para captar as imagens do muro. A fina ironia desta instalação é que não podia dar a ver de forma mais clara e nítida, sem deixar por isso de ser encarada como uma afronta aos nossos direitos visuais (já agora, o banco em que nos sentamos também foi pintado por cima, exactamente da cor original, e num canto da sala, aparentemente esquecido, está um saco de papel, também pintado). Além disso, repare-se que não está contemplado o desejo do espectador pela unidade, ou pela clarificação de um desfecho: este vídeo, em incessante repetição, é inaugurado cada vez que o espectador entra na sala, e depressa se descobre que não tem princípio nem fim, e muito menos um fim que explique um princípio.
A maior das instalações nesta exposição, que ocupa a quase totalidade da primeira sala da galeria, também se refere à imagem em movimento. Numa parede escreveu-se, recorrendo a fitas de vídeo VHS, a frase see and see not – o que equivale a dizer que se garantiu a impossibilidade de ver aquela fita específica enquanto se escrevia com ela. O chão está coberto com mais de quinhentas fitas, que também foram desenroladas e tiradas das respectivas cassetes. Ou seja, o elemento que ocupa mais espaço, que é verdadeiramente escultórico, em que é impossível não reparar imediatamente, é, ao mesmo tempo, aquele que mais fala da impossibilidade de ver, inutilizadas que foram as centenas de cassetes que o constituem.
Noutra sala, ao longo de uma das suas paredes, Luís Paulo Costa mandou construir um segundo muro, uma parede falsa – que se denuncia imediatamente enquanto tal porque não chega ao tecto, ficando-se por mais ou menos 1.70m de altura. O que significa que para alguém com uma altura que exceda aquela medida é possível espreitar para o oco entre os dois muros. Lá em baixo existe de facto algo que se vê, e que é um maço de notas de dólar preso com um elástico, ambos elementos mais uma vez pintados por cima pelo artista.
Note-se que os maços de dinheiro, concretamente de dólares, remetem para transacções financeiras que já todos presenciamos em filmes. Em muitos deles coloca-se a questão da autenticidade do dinheiro, noutros enchem-se malas com papéis brancos a que se sobrepõem algumas notas verdadeiras – o dinheiro pode ser papel pintado, ou apenas uma fina camada sobre material sem qualquer valor. Este maço de Luís Paulo Costa pode ser ambas as coisas, pintura sobre papel sobre folhas brancas. O facto é que para a maioria das pessoas esta questão nunca terá resposta, porque não o pode inspeccionar – no fundo daquele fosso nunca o poderemos agarrar.
Outra peça da exposição chama-se nu descendo escadas – e o simples facto de nomeá-la convoca imediatamente objectos ausentes, algo que não está efectivamente lá, que ela não pode ser, e que são as obras de Marcel Duchamp e de Gerhard Richter. Colocada ao pé das escadas que na galeria dão acesso a uma segunda sala de exposições e ao acervo, ela resume-se a um par de sapatos e a duas peças de roupa, tudo elementos mais uma vez pintados por cima, exactamente da cor dos objectos originais. Calçado e roupa estão dispostos desordenadamente, como se alguém os tivesse espalhado enquanto se despia e imediatamente antes de descer as escadas. Ou seja, a peça, a começar pelo título, aponta para alguma coisa que não se vê, circunscrevendo um espaço de ausência.
Mais uma vez, os objectos apropriados por Luís Paulo Costa não têm em si nada de extraordinário – são sapatos e roupa pretos, sem nada que os distinga excessivamente. Porquê? Porque lhe interessa apresentar objectos enquanto desaparecem (e isto não tem nada de mágico). Explico melhor. O artista escolhe normalmente, como vimos, objectos produzidos industrialmente. E escolhe aqueles que, pelo menos no seu ambiente natural, são praticamente invisíveis: prateleira, banco, telefone, caneca, saco de papel, maço de cigarros, todos a merecer prémios de design, justamente por na aparência não denunciarem qualquer design. Temos aqui uma primeira preocupação com o desaparecimento. Mas Luís Paulo não utiliza a estratégia do ready-made, não se limita a confiscar objectos. Habitualmente cobre-os de tinta com as suas cores originais, atribuindo-lhes suficiente importância para com eles gastar horas de trabalho meticuloso, mas garantindo simultaneamente que eles desaparecem à medida que os reveste. Depois, ao colocá-los num espaço expositivo, salvaguarda sempre a tensão entre presença e desaparecimento (note-se que alguns podem sempre passar despercebidos), instituindo a actividade do espectador como um circuito, e um circuito forense, e reclamando dele uma participação que ultrapassa o ligeiro complemento. E se algumas das suas peças nos frustram é justamente porque Luís Paulo Costa faz ranger a nossa relação com as imagens. Repare-se que os visitantes desta mostra colocam-se em bicos de pés, espreitam pelo intervalo entre paredes, inspeccionam o avesso de uma tela. eye level impõe-nos como potenciais voyeurs, e quase sempre para vermos o fragmentário, o quase nada – o esforço só sublinha a inutilidade de querer ver tudo, sempre mais. Simplesmente porque aqui não funciona o slogan do pornográfico, e aquilo que se mostra nunca se pretende tudo, muito menos a saturação do real em todos os seus interstícios.
Ricardo Nicolau
Fevereiro 2006