[...] todo o saber está envolto numa escuridão impenetrável. Distinguimos apenas clarões isolados no abismo da ignorância, no edifício do mundo trespassado de sombras. (1)
«Pintar o eco enquanto confrontamos a montanha silenciosa… o som como uma escultura, um corpo movendo-se para trás e para a frente no espaço», escreve Luis Paulo Costa na descrição do processo de pintar a tela Eco (2018), uma montanha branca e cintilante. É uma boa metáfora para uma obra que é definida pela repetição, pela rasura e pelo retorno. Ele não propõe um olhar novo ou inocente, já que aquilo que realmente importa merece ser revisto, sendo que «ver de novo não é o mesmo que ver pela primeira vez», mas infinitamente mais rico.(2) A exposição Echo / Eco: based on a true story toma a forma de um ensaio artístico. É uma «encenação momentânea de objetos que estão constantemente em movimento à medida que fazem a sua viagem entre estúdio, museu, galeria, coleção e por aí adiante.» Cada encontro e cada contacto acrescentam experiência, puxando a obra de arte para fora do passado e para uma série de presentes. Uma exposição pode reportar ou experimentar — pode confirmar algo que já é conhecido, como factos históricos, continuidade estética ou progressão artística — ou, em alternativa, as exposições podem desafiar ideias e examinar os limites da prática.
Ainda que a produção de Costa inclua a escultura, a fotografia, o vídeo, a imagem digital e a instalação, o seu trabalho é, na sua essência, o de um pintor — algo que se torna absolutamente claro nesta exposição. Independentemente das suas qualidades materiais, é o olho aguçado do pintor que molda o trabalho, uma navalha de Occam que corta através das camadas das imagens repetidas numa tentativa de representar o mundo, não como ele é, mas sim como deveria ser.
Trabalhando com imagens da Internet, da imprensa, e suas próprias fotografias. Costa enquadra-as, corta-as e manipula-as para depois imprimir os resultados sobre tela. Finalmente, cada imagem é escrupulosamente repintada a óleo, onde a ação nos coloca perante um paradoxo de simultaneidade: a cada gesto, o ato de pintar revela e obscurece a imagem.
Cada pintura reproduz a imagem por baixo de acordo com a qualidade da reprodução, o que explica o facto de as pinturas apresentarem superfícies bem distintas e diferentes. No entanto, nenhum dos trabalhos é inteiramente plano, já que o trabalho é sempre visível na textura subtil das pinceladas, e também da tela. Assim, o artista revela a «ação» da pintura ela própria, uma aglomeração texturada de gestos pintados e não polidos, que não servem para demonstrar o virtuosismo ou a imaginação do pintor: estes gestos são a aplicação consistente de um certo princípio conceptual que não é focado no pintor, mas sim na (ideia de) tinta.
Sete igual a um (2018), uma instalação composta por sete pinturas cinzentas e aparentemente idênticas, ilustra bem este princípio. Uma observação mais atenta revela variações subtis nos painéis, que mostram secções do céu que são fragmentos de uma tela maior que foi recortada. A crítica Shirley Ann Jordan afirma que «ainda que seja possível definir vários objetos, de uma vez, através das suas relações entre eles, nada pode ser definido em isolamento. Não há nada que seja cognoscível por si só, mas apenas através da sua relação com outros objetos.»(3)
Waiting for the Snow (2018) sustenta este argumento, de que o significado reside na oscilação entre os objetos. O trabalho consiste numa série de finos postes metálicos pintados alternadamente de amarelo e preto e cravados no chão da galeria. Vistos no seu conjunto, eles desenham a fronteira de um território ambíguo e hipotético cujo enigma pode apenas ser resolvido quando consultamos o título. Aí, somos momentaneamente impelidos para um ambiente invernal, um tempo no qual iremos encontrar neve acumulada nesse espaço, e a sua profundidade será medida por estes postes.
Num momento em que o vemos na sua fase mais madura e produtiva, o reconhecimento de Costa continua a crescer. Ainda que a sua visão central se mantenha constante e a sua vontade firme, a sua obra rica e variada adquiriu uma nova urgência pictórica. A diferenciação Kantiana entre Vorstellung — uma imagem ou ideia mental — e Darstellung — uma representação — é útil já que elabora sobre a relação entre a imaginação imaterial e a exposição tangível de algo que já é presente.(4) A oscilação entre estes dois conceitos constitui uma dialética que é central ao trabalho do artista.
Deste modo, um objeto e a sua representação são duas entidades distintas, mantidas à distância uma da outra. Mas a perceção procura apresentar-nos experiências unificadas e transforma o mundo em imagem, de acordo com o filósofo Martin Heidegger, enquanto a obra de arte se transforma no objeto da experiência subjetiva.(5) A série de pinturas que Costa produziu em 2018, representando mãos nas posições usadas para projetar sombras de animais, é uma análise deste paradoxo. As mãos não projetam sombras na parede, sendo que apenas são visíveis as sombras nos dedos nas palmas das mãos — o que faz com que os gestos que elas ensaiam sejam completamente fúteis.
Podemos ver uma abordagem semelhante no trabalho Interior (Jarra), de 2010, que nos mostra um ramo de flores murchas suspensas por um suporte invisível. O título sugere uma jarra, mas esta é omitida da pintura. O facto de não vermos uma coisa não quer dizer que ela não esteja presente.
Este truísmo está no cerne da tradição Europeia da natureza morta na pintura dos séculos XVI e XVII. As representações de jarras, pratos, caça, peixe e vegetais dispostos sobre mesas e plintos sugerem uma completude hermética, mundos fechados sobre si próprios. E no entanto, muito permanece fora do nosso alcance, já que o verso dos objetos permanece invisível ao nosso olhar, como um lado oculto da lua do universo pictórico.
Ecoando a abordagem clássica da natura morta, a exposição apresenta dois trabalhos em grande escala Composition (Table) (2018) e Composition (Carpet) (2018). A composição de chão é apresentada numa carpete industrial cinzenta e mistura objetos do período entre 2014 e 2018 — caixas de cartão abertas e fechadas, um cesto do lixo, sacos de papel, tampas de ventilação — pintados cuidadosamente de forma a serem idênticos a eles próprios. No longo expositor de mesa, o artista usa uma estratégia semelhante, agregando diferentes pedaços de madeira carbonizada, repintada num preto brilhante que imita a sua superfície, molhos de espargos descolorados e um par de luvas brancas achatadas. As instalações são ainda referidas como Artificialia e Naturalia, o artificial e o natural, uma invocação das taxonomias utilizadas nos «Gabinetes de Curiosidades» dos primeiros colecionadores. Uma série de telas sob a rubrica genérica de Based on a true story acompanham as instalações, representando pormenores dos objetos em exposição. No entanto, ao invés de os mostrarem na luz brilhante dos focos da galeria, as novas
pinturas são crepusculares, utilizando apenas os negros e cinzas da noite. As pinturas Espargos brancos (2018) representam o molho de espargos com uma aparência espetral, como se fossem ossos descolorados penetrando a escuridão.
Estas repetições duplas usam a técnica literária e cinematográfica do mise en abyme, uma estratégia especular na qual o conteúdo do meio é o meio ele próprio — a história dentro da história. Esta regressão infinita é o paradigma da natureza referencial das imagens, da forma como elas são incapazes de alcançar os alicerces da realidade, como um espelho infinito que não sabe quando parar.
Reduzindo a luz nos trabalhos, o artista invoca a sensação do Noturno, uma tradição tão eficaz na arte e na música, das pinturas lúgubres e meditativas de James Abbott McNeill Whistler às composições para piano de John Field e Frédéric Chopin.
As estrelas pálidas deslizavam para os seus lugares. Tudo nelas era quedo e sombrio. Porque não disponhamos de um horizonte visível, o mundo ainda não completamente escurecido parecia-nos infinitamente maior — aquele era um momento no qual tudo pode acontecer, tudo é possível.(6)
De Olhos fechados (2018) mostra-nos uma vista noturna de uma casa com as janelas fechadas e opacas. A habitação é obscurecida pelo que parece ser um vidro baço e parcialmente refletor interposto entre o observador e a casa. Como o título sugere, a qualidade desfocada da superfície oferece à imagem a textura de uma experiência onírica.
Estes trabalhos convidam o espectador a observar, a refletir e a sintonizar-se com o «espaço encenado» da exposição. O artista não oferece a revelação de uma narrativa, mas sim uma ênfase num tom ou disposição à qual podemos chamar uma atmosfera:
Uma exposição é um tipo de atmosfera: momentaneamente, encontramo-nos fechados hermeticamente no ambiente artificial que os trabalhos e o espaço conspiram delimitar. [...] Uma arte atmosférica — isto é, uma arte que se envolve no escuro, que sugere afinidades e correspondências através do tempo, que evoca ao invés de narrar, que inspira ao invés de argumentar — pode bem ser a arte que responde mais diretamente ao nosso sentido de maravilhamento e curiosidade.»(7)
Os tons chiaroscuro de Agosto (2018) evidenciam a dívida de Costa às técnicas essenciais da pintura, coincidindo com o elogio do sombrio feito pelo escritor Brian Dillon, que defende que «são as sombras que nos permitem começar a ver».(8) Representando uma paisagem florestal, o trabalho é inteiramente definido pela distinção entre sombra e sombreamento, um diálogo pintado nos tons subtis de escuridão que texturam a atmosfera.
O crítico Brian O’Doherty escreve: «As coisas transformam-se em arte num espaço no qual ideias poderosas sobre arte se focam nelas», acrescentando que «de facto, é frequente que o objeto se transforme no meio através do qual essas ideias se manifestam.».(9) Nesta perspetiva, o trabalho de Costa referencia a importância da arena na qual o discurso da arte contemporânea acontece — a galeria, que é o modelo, o lugar onde guardamos a ideia de arte como uma forma de exposição. Mas estas mesmas circunstâncias podem limitar o acesso ao trabalho a uma pequena elite. O historiador de arte Camiel van Winkel escreve que a arte de hoje pode bem representar «um ato adiado de luto por uma autenticidade da experiência... em torno do reconhecimento melancólico de que a cultura é uma questão de signos que se referem a outros signos, um jogo de ilusões e enganos inelutáveis.».(10)
Muito pelo contrário, a exposição Echo / Eco: based on a true story não procura ludibriar o espectador. Propõe, em vez disso, um envolvimento sensorial imersivo com o espaço, o assunto e as obras. O filósofo Michel de Certeau distingue dois tipos de experiência espacial: o mapa estático e o passeio móvel. O primeiro permite-nos apreender todo o território no primeiro olhar, enquanto o segundo é uma experiência sensorial através da qual o local é explorado através das relações que estabelecemos com ele. De um ponto de vista curatorial, uma exposição segue esta analogia do mapa para mostrar diferentes trabalhos numa certa ordem, de forma a apresentar um argumento estético fundamentado, enquanto a instalação é um ambiente totalizante — o covil autónomo do artista — e um passeio que se revela gradualmente através da experiência. Echo / Eco: based on a true story situa-se na intersecção entre estas duas posições, já que combina princípios da curadoria e da instalação, decididos numa colaboração estreita entre os curadores e o artista. Trabalhando juntos, a noção de autoria liberta-se da sua premissa fixa e é passada de mão em mão entre indivíduos, refletindo os diferentes estádios de desenvolvimento da exposição; talvez funcione como uma emanação momentânea do termo parergon (11), utilizado para examinar o discurso da moldura, questionar a divisão binária entre o interior e o exterior. Desta forma, a exposição é tanto a arena no qual o trabalho é apresentado como o campo discursivo no qual ele opera. É, ao mesmo tempo, um espaço atmosférico e uma estrutura de suporte, crítica e conceptual, para o encontro com o trabalho.
Nicolas de Oliviera e Nicola Oxley
(1) W.G. Sebald, Os Anéis de Saturno, Quetzal, Lisboa, 2013, p.24.
(2) Luis Paulo Costa, correspondência eletrónica com os curadores de Oliveira e Oxley, 22/7/2018.
(3) Shirley Ann Jordan, The Art Criticism of Francis Ponge, W.S. Maney & Son Ltd, 1994, p.32.
(4) F. Scott Scribner, Matters of Spirit: J. G. Fichte and the Technological Imagination, University of Pennsylvania Press, PA, 2010, op.cit.
(5) Martin Heidegger, The Age of the World Picture, in A.I.Tauber (ed), Science and the Quest for Reality. Main Trends of the Modern World. Palgrave Macmillan, Londres, 1977.
(6) Olivia Howard Dunbar, The Shell of Sense, in American Fantastic Tales: Terror and the Uncanny from Poe to the Pulps, 2009, Literary Classics Inc., p.333.
(7) Brian Dillon, Waterlog: Journeys Around An Exhibition, Film and Video Umbrella, Londres, 2007, p.24.
(8) Brian Dillon, ibid, p.24.
(9) Brian O’Doherty, Inside the White Cube: The Ideology of the Gallery Space, University of California Press, Berkeley, p.14.
(10) Camiel van Winkel, During the Exhibition the Gallery Will be Closed: Contemporary Art and the Paradoxes of Conceptualism, Valiz, Amsterdão, 2012, p.95-6.
(11). Jacques Derrida, The Truth in Painting, trans. Geoff Bennigton and Ian McLeod, University of Chicago Press, 1987, op.cit.