O olhar voyeurista é um assunto recorrente no trabalho de Julião Sarmento. Materializados em corpos femininos, o desejo, a sexualidade, o controlo e a violência — emocional e física — aparecem plasmados em múltiplas formas nos seus trabalhos. A exposição Reel Time inclui um número de filmes, vídeos e performances criados em diferentes momentos ao longo de um período de quarenta anos, compreendido entre 1976 e 2011. Os trabalhos de Julião Sarmento nos suportes da performance e da imagem em movimento são fundados na história da performance e da arte conceptual da última metade do século XX, utilizando o corpo como ferramenta e lugar — à semelhança dos trabalhos de Marina Abramović, Bruce Nauman e Carolee Schneemann. No entanto, no caso de Sarmento os protagonistas e os seus gestos performativos são também limitados por uma espécie de formalismo estilístico que faz lembrar a figuração impressionista do século XIX — pensamos, por exemplo, na escultura de Edgar Degas, La Petite Danseuse de Quatorze Ans (c.1880) — e está presente nos seus trabalhos tridimensionais, em particular nas suas esculturas de partes do corpo feminino. No entanto, o seu formalismo é subvertido por uma forma de sexualidade altamente encenada, próxima do registo das personagens femininas que encontramos na obra cinematográfica de Pedro Almodóvar.
A sujeitualidade e objetualidade das protagonistas femininas de Sarmento é difusa. Por vezes, desempenham um papel poderosamente psicológico. Outras vezes, são reduzidas aos significantes da sua feminilidade. O filme Faces, 1976, é uma espécie de tríptico. Duas cabeças com cabelos, uma loura e outra morena, esfregam-se, uma contra a outra, no fundo do ecrã. A isto segue-se um plano aproximado de duas mulheres beijando-se. A câmara foca as suas bocas e línguas — lambendo, chupando e movendo-se uma em torno da outra. À primeira vista pode parecer erótico, mas à medida que o tempo passa e o beijo continua, as línguas transformam-se em pedaços de carne molhada, os movimentos são menos sensuais, ou eróticos, tornando-se mais grotescos e rudimentares na abstracção do plano aproximado. Eventualmente, embora mantendo a sua beleza, o plano torna-se quase aborrecido. A parte final representa duas mulheres sentadas, nuas e com caras muito maquiadas, uma descansando a cabeça no ombro da outra — um epílogo terno que coroa a intensidade da sua performance.
Faces foi feito em Portugal, logo após o fim de uma ditadura que se estendeu por mais de quarenta e um anos — décadas durante as quais as expressões das artes, do sexo, da religião e da política eram censuradas e proibidas. Com este enquadramento, o filme tem amplas conotações de liberdade, privacidade e cumplicidade. Como é bem-sabido, o beijo foi alvo de inúmeros estudos por parte de muitos artistas, de Auguste Rodin e Gustav Klimt às performances contemporâneas de Tino Sehgal. No entanto, vendo Faces sob a lente da revolução da Internet — a intimidade distorcida deste beijo e o facto de ser interpretado por duas mulheres (particularmente quando considerado no contexto de trabalhos que exploram directamente a identidade queer e lésbica) — podemos lê-lo como um artefacto histórico, já que o mundo digital está cheio de vídeos com mulheres representando com outras mulheres para públicos masculinos. No entanto, esta realidade serve para dar ênfase àquilo que Sarmento confronta: o desejo — e todas as influências sociais e culturais em torno dele — do espectador.
Doppelgänger, 2001, joga com os clichês da comunicação nas relações heterossexuais. Duas mulheres, uma vestida de negro, a outra de branco, uma num espaço interior, outra num espaço exterior, interpretam um guião praticamente igual. Enquanto a mulher de negro limpa o rosto na casa de banho de um hotel, a outra caminha à beira-mar. Ambas recebem chamadas de homens com quem parecem ter uma relação romântica. A chamada começa num tom cordial e degenera numa discussão. Os dois homens dizem frases semelhantes: «Ás vezes esqueço-me, começo assim a olhar para as coisas…» A mulher anui, para depois explicar que se sente doente e febril. Os homens respondem: «Não sejas chata! Sempre com doenças. Sempre com chatices.». As duas mulheres trocam de posições, a mulher de branco lava o rosto na casa de banho, a mulher de negro caminha. O título do filme alude à ideia do doppelgänger, ou duplo. As duas mulheres vivenciam situações idênticas, interpretando um papel humorístico, ainda que triste, que representa os papéis de género nas relações heteronormativas. Sarmento trabalhou muitas vezes com dípticos de corpos femininos nas suas pinturas e esculturas. No entanto, estas duas personagens, as suas acções e narrativa, estão mais próximas dos lugares comuns do cinema do que dos arquétipos da pintura. Os clichês transformam-se em clichês porque são circunstâncias que ocorrem com frequência. Sabemos que existem, porque os experimentamos. O clichê não é «mau», é antes um epítome cultural para uma verdade colectiva, ainda que, por vezes, inconsciente.
No vídeo R.O.C. (40 plus one), 2011, Sarmento aborda motivos de cor e de forma e os efeitos da linguagem que é utilizada para descrever estas coisas — que, por sua vez, alteram a nossa percepção. Uma mulher despe-se lentamente enquanto lê as Anotações sobre as cores (1950), de Ludwig Wittgenstein. Este texto reflecte sobre o modo como a percepção da cor se manifesta na linguagem que é utilizada para a descrever. Wittgenstein trabalha sobre as ideias que estiveram na origem da Teoria das cores de Goethe (1810), que aborda as ideias psicológicas em jogo na nossa experiência e entendimento da cor. Wittgenstein foca-se na percepção da brancura, da luminosidade, da transparência e da opacidade e o impacto das outras cores na forma como percebemos estes estados. No vídeo de Sarmento, à medida que o texto se torna mais denso, a mulher tropeça na pronúncia de algumas palavras e frases enquanto dobra pacientemente cada peça de roupa, que coloca sobre uma cadeira. Um ato que normalmente seria considerado excitante — o striptease — torna-se mundano. Num mesmo momento, há três sistemas em jogo — cor, linguagem e corpo — neste triângulo conceptual, a semiótica de um relaciona-se directamente com os outros dois. No entanto, R.O.C. (40 plus one) traz-nos também à mente a performance de Andrea Fraser, Official Welcome, 2001, na qual Fraser lê um modelo de um discurso de boas-vindas — criado a partir de uma colagem de citações de vários protagonistas do mundo das artes — enquanto se despe, um gesto que pretende ser uma crítica feminista à posição das mulheres na história da arte. Neste contexto, a acção do artista masculino, dirigindo uma mulher que se despe numa acção conceptual, é complexa.
Não vi a performance Cometa, 2009, ao vivo. Vi apenas o registo vídeo do evento e ouvi a descrição que Sarmento fez do trabalho. Desta forma, posso apenas transmitir aquilo que imagino possa ter sido a experiência da performance. Uma pessoa entra numa sala, sozinha. Lá dentro, encontra um homem e uma mulher sentados em duas cadeiras, num espaço completamente pintado de verde. Um verde-floresta, brilhante, quase luminoso. Quando a porta se fecha atrás do espectador, a mulher levanta-se e põe música a tocar. Começa a dançar sozinha. Logo depois, o homem ergue-se e junta-se a ela. A dança aquece, torna-se mais sexual. Quando chegam a uma espécie de clímax, a música pára e sentam-se novamente. Sarmento descreve uma experiência violenta, diz que os espectadores sentem estar num sítio onde não é suposto estarem. Estão demasiado perto da intimidade dos intérpretes para que possam considerar-se voyeurs. Assim, o espectador parece entrar numa espécie de menáge à trois psicológico que nunca é verbalizado.
O historiador de arte John Berger escreveu: «Uma mulher deve contemplar-se continuamente. É acompanhada quase constantemente pela imagem que tem de si mesma. Quando cruza uma sala ou chora a morte do seu pai, não pode deixar de imaginar-se a si mesma andando ou chorando. Desde a mais tenra idade, ela é ensinada a examinar-se continuamente. Ela tem de examinar tudo quanto é e quanto faz, porque a forma como se apresenta aos outros — e particularmente aos homens — é crucial para aquilo que é normalmente entendido como sucesso na sua vida.». Desde muito jovens, as mulheres são socialmente condicionadas para estarem sempre conscientes da sua própria imagem. No entanto, já ultrapassamos seguramente esta consideração binária da sujeitualidade e objetualidade do feminino: na era da Internet estas condições aplicam-se a todos, na medida em que todos exibimos as nossas vidas em público. No entanto, a forma como Berger destaca o como a mulher deve apresentar-se ao homem, e como isso é de uma importância fundamental para o seu sucesso na vida, é, infelizmente, ainda actual. Isto implica que o valor individual e público de uma mulher deriva principalmente da sua sexualidade. Ainda que o feminismo e os movimentos dos direitos civis tenham contribuído para o avanço da condição feminina e do seu estatuto, o subtexto latente que nos diz que a mulher deve ser sexualmente sedutora, atraente segundo os padrões normativos da sociedade, é hoje mais forte do que nunca. Em Reel Time, as mulheres de Sarmento não estão sozinhas, cada uma aborda um tipo diferente de relacionamento: entre duas mulheres, entre homem e mulher, entre uma mulher e um público e entre uma mulher, um homem e um espectador. No trabalho de Sarmento, vemos destacados os estados contraditórios da intimidade, as personagens que representamos para fora e o prazer e a violência que devêm do acto de olhar — seja ele voyeurístico ou objectivo.
Kathy Noble