«Luísa trazia um vestido de lã azul, que arrastava um pouco, dando uma ondulação melodiosa ao seu passo, e as suas mãos pequeninas estavam escondidas num regalo branco.(…) Deram alguns passos na rua. Um largo sol aclarava o génio feliz: as seges passavam, rolando ao estalido do chicote: figuras risonhas passavam, conversando: os pregões ganiam os seus gritos alegres: um cavalheiro de calção de anta fazia ladear o seu cavalo, enfeitado de rosetas; e a rua estava cheia, ruidosa, viva, feliz e coberta de sol.»1
Singularidades de uma Rapariga Chamada Pintura
Apesar do título deste texto, engane-se quem acha que vai encontrar nas obras de José Loureiro uma outra narrativa que não a da própria pintura. Se existe aqui alguma história, ela surge do vocabulário próprio da linguagem pictórica, tecendo-se entre círculos, quadrados, linhas e rectângulos. Os programas de intenções, os projectos e as historietas nunca fizeram parte da vontade e do pensamento deste artista. Esta exposição não é excepção.
O priolo que dá o título a uma das suas pinturas (algo raro nas telas deste artista) não é nenhuma referência directa ao priolo-pássaro, espécie em perigo de extinção existente na ilha de São Miguel nos Açores. Poderíamos pensar numa vaga associação com a ideia de que a pintura está, ela própria, quase extinta. Mas se assim o fizermos estamos cada vez mais longe da verdade dos factos. Aqui a pintura é actualidade e não poderia estar mais viva e a par daquilo que designamos como contemporâneo.
O priolo-pássaro é um ser que é caracterizado por ser reconhecido à distância pelo seu cantar característico. Mais uma vez, só vagamente o podemos associar com estas pinturas. As obras de José Loureiro possuem a força de uma vibração especial que nos faz afastar e aproximar do plano, facilmente reconhecidas à distância e cuja associação com a música não é desviada de sentido. As suas telas possuem o carácter de um ecrã vibrátil que deseja anular a separação que existe entre a representação pictórica e a própria realidade, dada pelo lado difuso dos contornos. Uma invasão da vida na tela e da tela na vida, mostrando igualmente que a rigidez pode tornar-se uma coisa leve, etérea. Assim, as coisas tornam-se fantasmas dentro da própria forma. Esta ideia de ecrã, algo a que Gil Lipovetsky se tem dedicado para caracterizar a sociedade actual, não é nova neste artista. Desde o início dos anos 90 que muitas das suas séries de pinturas se referem directamente a ecrãs, impressões, projecções, reprodução e efeitos digitais.
A qualidade vibrátil do plano da tela traz, ainda, outro tipo de associações. Evoca as novas tecnologias, tais como o ecrã da televisão ou ainda, em Priolo, vagamente, uma lâmpada fluorescente. Neste sentido, a pintura de José Loureiro, vive da procura de outras tantas tensões, onde a mais visível e irredutível será entre superfície e profundidade. O seu trabalho, como a vida, vive destas oposições.
As telas sem título presentes nesta exposição encontram outra vaga semelhança com o priolo-pássaro que possui um bico negro e forte e o corpo de cor cinza e cauda preta. De preto e de cinza também tratam os rectângulos de José Loureiro. No entanto, a questão das cores é apenas um jogo próprio das dinâmicas da representação pictórica.
A intenção será sempre desviar o acontecimento da tela de uma aborrecida previsibilidade, como se a pintura fosse um organismo vivo com o qual o pintor estabelece um diálogo, na luta incessante (nem sempre bem sucedida) pelo controle da força da sensação contida na tela. Esta pesquisa obsessiva do mesmo motivo, numa cadência de repetição e diferença, faz parte da essencialidade da pintura, da sua mania. Mas, novamente, também faz parte da vida.
Em conclusão, a única narrativa que o observador poderá encontrar é a que citamos no início deste texto. Tudo o resto vive dessa falta de âncora referencial. No entanto, José Loureiro mostra-nos pela força da sensação das formas um Mundo do Nada Libertado (como afirma José Gil a respeito de Malevich), possibilitando a cada um de nós colocar nele todas as nossas livres interpretações. Talvez seja esta liberdade contemplativa que está verdadeiramente em perigo de extinção, num mundo de mensagens que comunicam e comandam os nossos pensamentos. Assim, talvez devêssemos fazer como os ornitólogos e dedicarmo-nos longamente à contemplação da espécie, desfrutando do prazer das singularidades de uma história que pertence à vida no seu sentido mais essencial, na pureza da sua economia de meios.
Carla de Utra Mendes
1. Singularidades de Uma Rapariga Loura in Obras de Eça de Queiroz – Contos, 20.ª edição, Livros do Brasil, Lisboa, s/d - pp. 30-34.