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O idílio habitual
27

 

Novembro

 

2020
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Maio

 

2021
José Loureiro - O idílio habitual
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José Loureiro - O idílio habitual

Da estrela c1327kb nada se sabe, a não ser que emite uma luz ténue, no limite da visibilidade; como uma velha pintura encostada a um canto, à espera de um interlocutor atento. Já do cuco, sabe-se que leva uma vida invejável, que merece ser registada e difundida em permanência, não vá algum pormenor desse idílio passar em claro. 


Como carácter, o cuco é um clássico da literatura universal. Como tema, é inesgotável. O cuco não é um pássaro, é uma fatalidade. 


Quando se diz que o cuco não é um pássaro, está a dizer-se que as palavras “cuco” e “fatalidade” são intermutáveis. As palavras têm diferentes graus de intermutabilidade. A palavra “cuco” é intermutável com a palavra “onze”. 

O onze singra. O onze não capitula. O onze lança-se das alturas em voo picado para debicar no cocuruto mais suculento. O onze exige o seu quinhão. O onze é letal. A genealogia do onze está fixada e é consensual: filho do dez, tem o oito bem encaminhado e ramificações no 1, 2, 3, 4, 1788 e 14. O onze, conduzido à guilhotina para ser decapitado, mete a cabeça para dentro e escapa resvés. O onze atormenta a pobre minhoca antes de comê-la. O onze persevera. O onze sabe qual é a pessoa mais importante na sala. O onze venera o onze certo. O onze certo vai variando. O onze desloca-se ao extremo oposto da mesa para um cumprimento obsequioso ao onze certo. Por vezes, à mesma mesa, estão sentados o onze certo e o onze que não é bem o certo, o que provoca ansiedade e desorientação no onze. O onze pode nunca chegar a dar com o onze certo; mas se o topa já não descola, desenhando um perímetro de segurança com um olhar ameaçador, sinal de que ninguém deve aproximar-se. O onze senta-se à mesa mais farta e marca o lavagante com uma cruz. O onze mantém um arquivo multimédia detalhado e em constante actualização de todos os crustáceos que fustigou, despedaçou, chupou, lambeu e cuspiu. O universo dos onzes obedece ao sistema decimal: onze de ponta, onze, meio onze, um quarto de onze, aprendiz de onze, onze péssimo, infra-onze, onze em traje de luzes, onze façanhudo, onze gourmet; se é em sentido crescente ou decrescente de importância é irrelevante: um onze é um onze . Equilibrista dotado, o onze faz inversão de marcha seguindo em frente e inflecte de direcção — no sentido azimutal das conveniências — não trocando o passo. O caso do onze encaixa na síndrome de Fernão Ferro: não há como evitá-lo para chegar a um sítio decente. O onze sente que a iluminação está irritantemente fraca e o tamanho das letras que compõem o seu nome inexplicavelmente pequeno. Sendo o passado uma nebulosa distante que desconhece e o presente naturalmente confuso, o onze desenvolveu um distúrbio de percepção que o faz acreditar estar muito avançado para a sua época, mesmo não sabendo exactamente qual ela é. Na cabeça do onze, ele vai na dianteira e a realidade, atrás, esforça-se por acompanhá-lo. O onze regurgita uma substância com uma coloração e consistência indeterminadas. Essa matéria flui para um tanque fundo e turvo que ninguém consegue despejar: ou porque o braço é curto, ou porque não há maneira de tactear o ralo. À primeira aberta numa conversa anódina sobre amendoins, o onze aproveita para mostrar as suas habilidades mais recentes; que um dia, compiladas e reunidas às habilidades mais antigas, darão origem às obras completas do onze, em vários tomos e a preço de saldo. O onze é um maçador. O sorriso do onze é uma torneira mal vedada a pingar mel. O onze faz cucu, mas se lhe perguntarem o que faz, logo levanta a asa e diz que é poliglota. O onze aprende tudo de ouvido e é um virtuoso do guizo amolgado. O onze tem um extenso currículo de ninharias acumuladas; por isso, o onze, o verdadeiro, nunca assina só onze. Não há memória de que o onze tenha alguma vez desenvolvido um pensamento que se diga seu sobre um simples monte de cascalho. O onze é um acumulador prodigioso de citações pífias sobre o cascalho. O onze rouba ao jogo. 


Embora não seja dado às angústias que acompanham a introspecção levada às últimas consequências, a que mói as entranhas — que ele afugenta de si como uma fraqueza de espírito intolerável que tolhe a energia e a vontade necessárias aos empreendimentos de vulto —, nos raros momentos em que se olha ao espelho, o que também lhe acontece, o onze tem consciência das suas limitações. Do seu bico sairá sempre o mesmo par geminado de monossílabos, em ritmo compassado, monótono, sem brio. Mas à vaga tristeza sentida, que costuma chegar-lhe nos melancólicos dias de chuva miudinha em que fica todo encharcado, rapidamente se sobrepõe uma constatação de um irrepreensível pragmatismo: o tempo desperdiçado a apurar o pio, infrutífero, pode ser gasto de forma ardilosa e com um proveito mais substancial. Não quer isto dizer que o onze não tenha princípios. O primeiro princípio, e o mais exigente, o basilar, e no fundo o único que conta e que nunca descura, é não construir o seu próprio ninho; desdenha as minudências desse ofício de delicada e paciente carpintaria: se há que fazê-lo, os outros que o façam. O onze apropria-se do ninho mais à mão com naturalidade, despejando quem lá está com eficácia assassina. Toma-lhe o gosto, e assim vai o onze saltitando de poiso em poiso, procurando sempre as melhores vistas. Às crias, vai-as deixando aqui e acolá a amadurecer. As mais afinadas, têm a promessa de um dia participar no grande coro dos onzes. 


Em tempos, arranjaram-lhe uma ocupação condizente com as suas modestas habilitações: quando batia a hora, saía por um buraco a mostrar a sua arte. Pensavam entretê-lo desta forma, desviando-o de um destino maior, que ele, no seu íntimo, já antevia possível. Descontando a figura ridícula que sabia estar a fazer, o onze não mais se deixou manietar e, não sendo tolo, antes pelo contrário, percebeu de uma vez por todas que o verdadeiro poder estava nos antípodas do canto refinado. Com uma determinação e clarividência invulgares, só ao alcance dos onzes, concluiu que martelar cucu incessantemente, sem hora e local marcados, podia não só levá-lo à presidência de qualquer agremiação, como, de caminho, meter o rouxinol no bolso — a némesis nunca abertamente confessada, que, como uma maldição, e sem lhe dar tréguas, o visita e atormenta em noites de insónia. Estilista consumado do piar monocórdico, encantatório até à náusea, operou uma verdadeira revolução ao transubstanciá-lo em elucubração elástica, adaptável a qualquer circunstância. Desde aí, o onze vive num relativo consolo, tendo apenas de se preocupar com os outros onzes, o que não é despiciendo. Sabendo-o melhor que ninguém, e talvez por isso, o onze vive obcecado com o lugar que ocupa na hierarquia dos onzes, e com razão: desse ambiente viscoso, vindos de cima ou de baixo, partem os golpes mais acerados e traiçoeiros. É uma labuta constante e o onze chega ao fim do dia exangue; para recomeçar no dia seguinte com a intrepidez de sempre. O onze não desanda.


O viver com desafogo, sendo uma aspiração legítima do onze, não está garantido. Há uma pressão sobre o onze, que, se não for bem gerida, pode levá-lo à perdição ou — um destino mais terrível ainda — de volta ao sombrio buraco de onde emergiu com alacridade para o mundo no longínquo ano de 1893. 


Ao onze, depois de empalhado, é concedida a grande cruz da ordem do contemporâneo perpétuo. 



José Loureiro 

Julho 2020 


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