Today is Just a Copy of Yesterday? 1
Entre as estratégias artísticas contemporâneas mais utilizadas encontramos o chamado remake. Por este procedimento entende-se a constante referência e renovação de obras do passado. Como se os artistas fossem uma espécie de DJ´s, limitados, numa estratégia de pós-produção, a utilizar em remix, músicas que são elaboradas por outros e colocadas à disposição de um novo arranjo. Assim, como se o mundo estivesse disposto em imagens, numa rede de circulação e distribuição livre, prontas a serem revitalizadas, os artistas actuais transformam o Museu Imaginário de A. Malraux uma realidade. Talvez aqui, o termo mais adequado para este gesto seja o de apropriação, que revela a saturação, e ao mesmo tempo, a democracia da arte contemporânea, que já não assenta sobre os valores de unicidade e originalidade que a Arte deteve no passado. Os grandes artistas têm uma parte de responsabilidade neste acontecimento. A indústria da cultura tem uma outra. Desta maneira, as grandes obras retornam sob a forma de fantasmas recalcados assombrando os jovens artistas pelo peso da sua influência. Por outro lado, permitem a estes mesmos artistas destituir os antepassados da categoria de mestres inalcançáveis.
H. Bloom, no seu ensaio A Angústia da Influência, descreve a ambivalência deste processo: uma espécie de bênção e doença ao mesmo tempo (é bem conhecida a gripe que derivou do nome: influenza). Assim sendo, esta é, simultaneamente uma inspiração divina que move os artistas na sublimação dos seus mestres, mas que os prende a um universo de referências (muitas vezes pesadas) que faz com que as obras do passado sejam copiadas e eternamente repetidas, dando a sensação de nos encontrarmos num mundo onde nada se pode definir como único e irrepetível. W. Benjamin captou bem a essência de uma era como a nossa, da cópia, devedora de uma industrialização que revelou a reprodutibilidade da obra de arte. No entanto, como afirma o mesmo autor, a obra de arte sempre foi reprodutível e nada é feito sem a influência de algo que já existiu. Vista esta questão de um lado positivo, e cumprindo o vaticínio de Lavoisier a respeito da natureza, nada se perde, (nada se ganha) e tudo se transforma.
Jonathan Monk (n.1969) é um dos melhores exemplos de artistas contemporâneos que fazem desta revitalização de obras e mestres do passado um modus operandi. Através da paródia e da ironia, este artista revitaliza obras de artistas que influenciaram o seu trabalho, nomeadamente o conceptualismo e o minimalismo dos anos 60 e 70. Nesta exposição, retoma uma das obras de Edward Ruscha, Nine Swimming Pools and a Broken Glass (1968), um conjunto de fotografias que se compõe num livro de artista. Nesta obra, E. Ruscha joga com ironia sobre o mundo do quotidiano, fotografando 9 piscinas de uma forma aparentemente banal e sem nenhum interesse. No entanto, no final deste conjunto, insere uma imagem de um copo partido, lançando o mistério insólito sobre o espectador, causando uma sensação próxima do suspense. Este copo estilhaçado serve como um elemento de significado contrário à imagem idílica das piscinas. O que fará ali aquele vidro? Será que foi cometido um crime? Será que é uma referência à água espalhada? Ou será apenas uma brincadeira do artista, jogando com o non sense de uma obra que deverá valer apenas por aquilo que é, sem necessidade de se ancorar a um referente externo e hermético? Pensando na sua linha de trabalho, este processo é devedor de uma vontade que o conceptual herdou do abstraccionismo: o de deixar o observador com um campo imenso de liberdade de interpretação. Talvez seja por este motivo que o livro de E. Ruscha contem uma série de páginas em branco. Para este artista, estas servem apenas para dar corpo à obra, afirmando ironicamente que são uma forma de não encarecer o custo de produção. Para o observador, estas podem ser a oportunidade de introduzir livremente uma outra versão nesta história.
Esta liberdade interventiva é algo que H. Bloom descreve como sendo a correcção criativa, utilizada como uma verdadeira ferramenta, para que a obra refeita não seja apenas uma mera cópia ou um exercício de destreza.
Ao inverter a ordem das imagens de E. Ruscha, através da correcção criativa, J. Monk, garante a autenticidade e originalidade da sua própria peça. O copo partido, que em Nine Swimming Pools and a Broken Glass, aparece no final da série, é em Broken Glass in the Swimming Pool, o centro unificador das nove piscinas que o artista transforma em luzes de néon azuis de diferentes tonalidades. Mantendo a importância da composição formal das fotografias de E. Ruscha, o artista procede a uma verdadeira transmutação quase alquímica: de água passamos à luz do néon, de fotografia passamos a instalação e a pintura a óleo, de distância contemplativa passamos a imersão sonhadora.
Apesar da notória influência, J. Monk ultrapassa e renova a obra do seu mestre. Ao realizar este processo, o artista traduz o seu antepassado. Traduzir é algo que não é estranho a este criador (Translation Piece, 2002). Na obra aqui exposta, e como nos ensina qualquer processo de tradução (porque traduzir é sempre trair), há sempre uma parte intraduzível, um resto. É justamente neste espaço que esta obra acontece.
Ao nela entrarmos, mesmo que reconheçamos a inspiração em E. Ruscha, não nos lembramos dela. Nadamos na piscina, deixando as nossas gabardines críticas de lado, e gozamos da paródia (e não da angústia) da influência. Só assim podemos tirar prazer das obras que, vistas pelo lado do copo meio vazio, são meras cópias do passado. Mas afinal permitimo-nos perguntar: o que há no mundo que seja virginalmente novo? Não será o mundo composto de transformação que nos traz a revigorante frescura da mudança?
Cuidado ao mergulhar, o vidro partido não nos oferece segurança. Mas tudo o que vale a pena na vida, acarreta sempre uma margem de risco… De outra forma seria o eterno tédio da segurança do repetível sem novidade. Como os acontecimentos históricos e até o nosso quotidiano, pretende-se que a arte seja um sistema aberto, como um palimpsesto pronto a ser reescrito. Retomando, como conclusão, a metáfora da água de um rio: a água que aqui corre nunca é a mesma do momento imediatamente anterior. É isto que a permite fluir, assim como nós, meros observadores num processo de transmutação, ele sim, o garante de que estamos perante uma verdadeira obra de arte. Única.
Carla de Utra Mendes
1 Este título é retirado de uma das obras de Jonathan Monk: Today is Just a Copy of Yesterday(Holiday) de 2002. O ponto de interrogação não faz parte do título original.