Exposição Coletiva
© Vasco Stocker Vilhena
ANDRÉ CEPEDA
FILIPA CÉSAR
JOÃO MARIA GUSMÃO
JOÃO ONOFRE
JOÃO PEDRO VALE + NUNO ALEXANDRE FERREIRA
JONATHAN MONK
JOSÉ LOUREIRO
MARIANA GOMES
ROBERT BARRY
YONAMINE
“Fomos de carro até trinta e cinco quilómetros antes de Farmington. Havia prados e pomares de maçãs. Os campos ondulados estavam cruzados por cercas brancas. Não tardou que começassem a surgir as tabuletas: O CELEIRO MAIS FOTOGRAFADO DA AMÉRICA. Até chegarmos ao local, contámos cinco. No parque improvisado havia quarenta automóveis e um autocarro de excursão. Fomos a pé por um caminho de cabras até um sítio ligeiramente elevado, ao lado, próprio para observação e para se tirarem fotografias. Toda a gente trazia máquina fotográfica; alguns mesmo tripés, tele-objectivas e jogos de filtros. Num quiosque, um homem vendia postais e slides: fotografias do celeiro tiradas da tal elevaçãozinha. Ficámos perto de umas árvores e pusemo-nos a observar os fotógrafos. Murray esteve calado imenso tempo, tirando de vez em quando apontamentos para um livrinho que trazia consigo.
— Ninguém vê o celeiro — disse ele finalmente.
Seguiu-se um longo silêncio.
— Mal uma pessoa vê as tabuletas indicando o celeiro, torna-se impossível ver o celeiro propriamente dito.
Tornou a calar-se. Pessoas com máquinas fotográficas abandonaram a plataforma elevada e foram logo substituídas por outras tantas.
— Não estamos aqui para captar a imagem, estamos aqui para mantê-la. Cada fotografia que tiram reforça a aura existente. Não sentes isso, Jack? Uma acumulação de energias sem nome?
Seguiu-se um longo silêncio. O homem do quiosque vendia postais e slides.
— Estar aqui é uma espécie de rendição espiritual. Vemos apenas o que os outros vêem. Os milhares que aqui estiveram no passado, os que hão-de vir no futuro. Concordámos em fazer parte de uma percepção colectiva e isso dá, literalmente, um colorido à nossa visão. De certo modo, é uma experiência religiosa, como tudo o que se relaciona com o turismo.
Instalou-se entre nós um novo silêncio.
— Tiram fotografias de gente a tirar fotografias — disse ele.”
- Don Delillo, Ruído Branco (White Noise, 1985 - tradução de Rui Wahnon, editado por Relógio d’Água)
O título desta exposição não nos chegou através de Don Delillo, mas de uma provocação constante em arranjar um nome para a coletiva que integra os artistas que podemos aqui ver hoje.
White Noise, ou Ruído Branco, em português, é um sinal aleatório com a mesma intensidade em diferentes frequências que são as obras e os trabalhos que aqui se reúnem. Diferentes ruídos brancos que têm, ao longo dos anos, contribuído para a criação de discurso artístico e, tal como em Delillo, “fazem parte da percepção coletiva a que concordámos em participar.”
Talvez por influência da galerista, talvez por coincidência, as obras que se agrupam para esta exposição remetem para a convocação de certos símbolos que, mais ou menos diretamente, apagam a necessidade de uma certa suspensão da descrença.
O que quero com isto dizer é que ao entrarmos na exposição e depararmo-nos com um símbolo de um ponto de interrogação pintado sobre uma tela branca acompanhada de um texto que explica a origem desse ponto de interrogação (What is seen is described, what is described is seen, version XIII), resta-nos esperar que qualquer necessidade de criação de ficção ou estória que explique ou que una todos estes trabalhos seja deitada fora.
A interrogação de Jonathan Monk que pontua o início da exposição, com um forte carácter tipográfico, torna-se, mais tarde, numa afirmação em forma de letreiro encontrada numa rua de Bordeaux por André Cepeda - TRUTH. E talvez a fotografia de rua do artista nunca tenha alcançado tão grande necessidade de mostrar a verdade. Mas que verdade é essa? A do artista? A nossa? A de um transeunte ao lado, nas ruas da cidade? Não encontramos qualquer cinema, apesar do preto e branco contrastante das fotografias. O que André Cepeda nos oferece são lugares, pessoas que de alguma forma ali pertencem e ali foram congeladas naquele espaço, o dos quatro cantos da fotografia que desamparam o espectador de qualquer possibilidade de continuação do real.
E por mais ficção que quiséssemos criar, por mais cinema que pudesse haver, agora com a instalação de Filipa César, F for Fake, apresentada pela primeira vez em 2005, a mesma é-nos proibida.
F for Fake altera no espectador qualquer ideia que este pudesse ter do filme homónimo de Orson Welles, de 1973. A história de um ladrão de arte é interrompida pelo realizador, Welles, enquanto este quebra variadas vezes a quarta parede, virando-se para o espectador e enganando-o em vários momentos. F For Fake, de César, utiliza este imaginário cinematográfico coletivo para o aprofundamento conceptual da ideia de cinema através de uma participação forçada. César remete o cinematográfico, para o social. Ao mesmo tempo, encontramo-nos perante um monstruoso F criado a partir de cassetes gravadas com a falsidade de Welles e da artista.
Em White Noise o real é muitas vezes falso. E as quatro fotografias que encontramos de João Maria Gusmão, ou melhor “fotografias de fotografias” - ampliações de uma série feita entre 2022 e 2024, são o escamoteamento do real; pequenas imagens de uma coleção de taças cerimoniais japonesas (Chawan), mas feitas por um ceramista inglês; fotografadas analiticamente, mas levadas para o laboratório para serem sujeitas a receitas alquímicas, fantásticas e de quase adivinhação; que ao mesmo tempo são aquilo que se vê, um processo tautológico de significado que não quer, nem deixa, que uma fotografia de uma taça deixe de ser isso mesmo, uma fotografia, ou uma taça.
Yonamine é direto e não por isso menos espantável - tudo na sua pintura é simbólico, neste caso, o colonialismo capitalista que o artista pôde observar enquanto vivia no Zimbabwe.
Um fundo azul, que remete para a Union Jack, o colonizador original; fitas refletoras pertencentes aos coletes de trabalhadores que representam as diferentes faixas desta nova bandeira britânica; o comércio chinês e o seu controlo sobre os meios de produção do Zimbabwe, através de um stencil do Central Bank of China. E para reclamar este novo colonialismo, os soldados da guarda da rainha, cosidos sobre a tela e que revelam algumas diferenças dos originais, aqueles que podemos observar aquando uma viagem a Inglaterra. Tudo isto abarcado pelo título desta série de telas, Azul Índigena.
Nem mesmo a escultura de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira escapa à negação da ficção. Aqui podemos ver um tronco (de uma árvore?) feito a partir de centenas de calças de ganga e um documento histórico, publicado pela Câmara de Lisboa, que não só se nega à menção das palavras por aquilo que são, como afixa multas para quem ousasse pôr A Mão na Coisa, A Coisa na Boca, A Boca na Coisa, A Coisa na Mão (2018). É um trabalho que a partir da sua verticalidade subverte ao espaço aquilo que poderia ser um pelourinho, lugar de castração e humilhação, numa coluna, um monumento de comemoração e homenagem a todas as pessoas que lutaram ou se revoltaram contra a repressão e perseguição homossexual em Portugal durante o Estado Novo.
De forma bastante crua, Mariana Gomes e José Loureiro desconstroem a pintura ao ponto de um tentar chegar ao seu grau mais depurado, caminhando levemente entre a catástrofe e a dádiva. E a outra, mais jovem, na procura pela forma, não a forma perfeita, mas o processo de metamorfose em constante acontecimento. Loureiro é claro. Já em 2013 advogava que “cor e pincelada são uma entidade única, indestrinçável. Por isso, há tempo e duração, princípio e fim.” Para Mariana Gomes a metamorfose não é imaginada, ficcionada, é sempre formal e teórica, como se fosse possível pintar movimento sem relacionar com isso o objeto que se movimenta.
Em TACET de João Onofre, encontramos um Piano Preparado que é incendiado por um pianista que toca 4’33’’ de John Cage. Se Cage tem uma relação com este filme através da sua peça silenciosa, têm também as suas “chance operations”, acontecimentos indeterminados que demonstram a aleatoriedade dentro de um contexto de criação artística. Dado o dilema enfrentado pelo intérprete de continuar ou não a tocar a peça, a tensão iminente do fogo a aproximar-se, o motor da obra de Onofre é a sua “indeterminação programática”.
A exposição termina com dois trabalhos de Robert Barry, contemporâneo de Cage e produtor de outras tantas operações aleatórias. A montagem das suas telas faz-se atirando seis moedas ao chão e transpondo a sua localização para a das pinturas na parede. Barry usa a linguagem como arma de arremesso à arte moderna, como questionamento das utopias modernas e é, de certa forma, um dos impulsionadores desta nova percepção coletiva e conceptual da arte contemporânea.
João Francisco Reis
Julho 2024