Sob o título “DREAMCATCHER”, Christian Andersson (Estocolmo, 1973) apresenta a sua terceira exposição na galeria Cristina Guerra Contemporary Art, em Lisboa.
A linguagem dos sonhos, bem como a tentação da utopia, está presente nesta exposição como se uma aura de liberdade e de reflexão sobre o mundo fosse vista em absoluta paralaxe. O vídeo Dreamcatcher é como um índice da exposição, no sentido em que algumas das obras expostas remetem para imagens visuais e mentais que a sequência narrativa, aparentemente entrecortada, vai construindo dentro de um espaço que se encontra dentro de um outro espaço, este um espaço físico, uma casa, ou uma cave compartimentada onde vamos ao encontro de uma imagem, de uma pintura de Giorgio de Chirico intitulada “Le cerveau de l’enfant” (1914). Se a sensação de vermos imagens dentro de imagens, como quadros dentro de outros quadros, é plausível, sentimo-nos por outro lado como se estivéssemos suspensos em cada segundo por uma perspectiva em mise en abyme que nos surpreende, principalmente quando a câmara se dirige para a última sala e mostra, num rápido vislumbre, um conjunto de imagens sobre a parede que compõem o atlas surrealizante por onde viajámos na primeira metade da duração desta obra.
O percurso é assimétrico, por entre interiores modernistas e outras vistas que tanto podem fazer parte de um universo onírico como de uma amálgama de páginas soltas de um fragmento desmembrado de uma enciclopédia da história da humanidade, à qual não escapa esse campo imprevisível mas real enquanto representação imaginária, a ficção científica, pois nela reside a imaginação ancorada na ultrapassagem da projecção utópica da realidade.
Porém, uma sequência animada em que um animal marinho conhecido como Portuguese man o’ war (Physalia physalis), se vai apoderando de um modelo da estrutura molecular de ADN e o derruba, vem quebrar o ciclo do tempo que o relógio digital marca e devolver-nos, por entre uma sequência informe, a uma relação visual com imagens que reconhecemos como objectos reais filmados, até emergirmos dentro da primeira sala daquela cave indistinta. Contudo, essa relação entre as imagens ficcionais, ilustrativas ou documentais, e o espaço em que o filme é realizado é traída, ou melhor pontuada, por pequenas esferas (ímanes), como pontos de luz, que estão colocadas sob as imagens recortadas desse atlas para as suportar. Esta subtil diferença de planos estabelece uma relação ambígua entre o que sobressai da imagem e o plano visual, que filmado em slow motion, nos parece imenso e simultaneamente cria um equilíbrio entre a fantasiosa miragem que qualquer imagem pode provocar e a sua realidade plástica enquanto modelo para uma deambulação captada a uma escala muito próxima, que a amplitude do olhar percorre sobre cada micro-acontecimento que cada imagem inscreve e codifica. Como na obra de Godard “Je vous salue, Sarajevo” (1993), em que uma imagem pode conter uma miríade de referências que nos faz duvidar da tragédia que esse pequeno documento contém, mas que é ultrapassada pela realidade descrita na locução e dissecada pelo movimento lento da câmara.
Regressemos a De Chirico, e à forma como Christian Andersson nos envolve nessa dualidade entre o espaço da imagem e as imagens com que constrói o espaço do espectador. Uma espécie de colunata desce do tecto da galeria e cria uma arquitectura frágil, dúctil como ruínas de papel em que reconhecemos uma forma da obra do pintor italiano presente no filme. Na pintura, esse elemento é um fragmento de uma coluna ou uma cortina? É neste aspecto que a sensação da ficção e a materialidade das obras pode conduzir-nos a um embuste entre as diversas instâncias daquilo que entendemos como real. Como essa mão: será mesmo uma mão que afaga e acorda o jovem da pintura? Que melancolia pode a realidade de um ser autómato exprimir? Como podem o universo metafísico de De Chirico e o “Teatro de Marionetas” de Heinrich von Kleist estar tão próximos sob o olhar de Chistian Andersson?
Tal como o painel de desenhos intitulado Year one, que não replica o “atlas” de imagens que percorremos no filme Dreamcatcher nos convida a um processo semelhante de construção imaginária de uma outra cadeia de narrativas fragmentadas. Esta dualidade que referi encontra na dupla claquete, uma escultura em madeira intitulada Clapper, a sua razão para iniciar os dois takes que nos definem com humanos: o sonho (a liberdade) e a sua correspondência com os aspectos inefáveis do real, que a experiência quotidiana pode obnubilar na sua multiplicidade voraz.
João Silvério
Setembro 2015